O tempo em uma viagem se divide em duas categorias: o tempo fora do aeroporto e o tempo dentro do aeroporto.
Felizmente, o tempo no aeroporto costuma ser bem mais curto (mas isso também depende de fatores como a Anac ou nuvens de cinzas vulcânicas da Islândia). Este tempo pode ser também dividido em AC e DC: antes do check-in e depois do check-in.
Naquela manhã nublada no aeroporto de Ruzyne, em Praga, ela tomava um capuccino lentamente, ainda em AC. Olhou para o relógio mais uma vez e resolveu adiantar o check-in antes que as hordas de torcedores da final da Copa do Mundo de Hóquei sobre o Gelo, que tomaram Praga naquele final de semana, invadissem todos os terminais.
Quando abriu a bolsa para pagar o café percebeu um pequeno desastre: o passaporte tinha ficado no hotel!
Maldita hora em que concordou em deixar o passaporte da portaria, nunca mais ia fazer isso. E se eles pegam o passaporte para fazer alguma falsificação e outra dela pode andar por aí e ser procurada pela Interpol?
Mas, naquele momento não havia tempo para conspirações. Saiu arrastando a mochila pelo aeroporto até chegar aos táxis.
Depois de algumas tentativas, algumas poucas palavras em tcheco grunhidas com a ajuda de um dicionário e muitos, mas muitos sinais, ela conseguiu fazer o taxista entender que eles precisavam ir voando para o hotel, pegar o passaporte, e voltar voando ainda mais rápido para o aeroporto.
Ao compreender o tipo de missão que tinha que cumprir, o taxista bigodudo enterrou o boné na cabeça, fechou o casaco e sorrindo de um jeito estranho, arrancou cantando os pneus.
A esta hora, as já citadas hordas do hóquei estavam a caminho do aeroporto. Mas, um congestionamento daquele tamanho não era problema para o motorista do táxi. Ele simplesmente aumentou o rádio e começou a costurar entre os carros.
Depois de muitas ruas terminadas em ové ou ská, eles se aproximaram do centro de Praga, o trânsito piorou ainda mais, com mais ônibus, vans e micro-ônibus saindo dos hoteis.
Nada abalava o motorista bigode-de-Magnum, ele apenas virava para trás de vez em quando sorrindo, acelerando e falando num inglês quase incompreensível.
´´Muito carro!´´
Ela só conseguia responder com um sorriso amarelo de tão nervoso e apontando para frente, tentando convencer o motorista que era mais importante olhar para frente, e não para ela.
Ao virar mais uma esquina, já se aproximando da Cidade Nova, a única pista livre de trânsito eram os trilhos do bonde. E o motorista bigode-de-Magnum, sorrindo, viu uma avenida Paulista inteira naquele espaço.
O que ele não viu foi o bonde atrás deles. O bonde por sua vez, tentava se fazer ouvir, buzinando sem parar (se é que bonde tem buzina).
Enquanto o carro voava por cima dos trilhos, com o rádio no volume máximo se misturando com a buzina do bonde colado na traseira do carro, ela teve um daqueles momentos de lucidez.
´´Então é isso. Eu vou morrer em Praga, dentro de um táxi, esmagada por um bonde e ouvindo rap. Em tcheco.´´
A buzina deve ter atrapalhado a música, pois o motorista parou de sorrir e colocou o braço para fora do carro fazendo sinais, como se mandasse o bonde passar por cima. E devia estar mandando mesmo, só ela que não entendia os berros em tcheco.
O bigode-de-Magnum finalmente jogou o carro para uma outra rua transversal, e, na contramão, subiu na calçada do hotel, na avenida Legerova.
Ela se soltou do cinto de segurança, saltou do carro e, por via das dúvidas, só conseguiu falar em inglês ´´Espere aqui´´.
Ela entrou zunindo no prédio antigo e foi até o balcão, onde a recepcionista tomou um susto. Ela tentou falar em inglês e, sabe-se lá a razão, tentando inventar um sotaque tcheco que saiu mais com jeito de alemão: “Passsspôrt!´´.
A recepcionista, sem entender a razão do sotaque, respondeu em inglês: ´´Nome, por favor?´´
Ela tentou falar, soletrar, linguagem de sinais. Até que lembrou do comprovante de reserva que tinha imprimido quando escolheu o hotel pela internet.
Com cara de enfado, a recepcionista olhou o papel, pegou o passaporte no cofre e entregou. Ela nem ouviu o suspiro de tédio, arrancou papel e passaporte da mãos dela e saiu correndo para entrar de volta no táxi do bigode-de-Magnum.
O trânsito de volta estava ainda pior, mas o motorista tinha adorado a ideia de correr pelos trilhos do bonde ouvindo rap misturado com buzina, o que adiantou bastante dentro da cidade. Ela até quase foi esmagada pelo bonde 22, rota na qual ela passeou a viagem inteira.
´´Um último passeio, não deixa de ser engraçado…´´, ela pensou já resignada com a idéia do esmagamento.
Saindo do centro de Praga, as vias para o aeroporto estavam praticamente paradas. E só faltava meia hora para terminar o prazo do check-in. Ela olhou para o relógio já calculando quanto custaria uma outra passagem de volta a Londres.
Mas o taxista entendeu o gesto como um incentivo e resolveu simplesmente sair da pista e atravessar o canteiro.
´´Desvio, desvio´´, ele falava em inglês olhando para trás, enquanto o táxi ia se ralando todo nas plantas.
O táxi entra em algumas ruas na contramão, anda por cima de canteiros, com os palavrões em tcheco do motorista se misturando com o rap tcheco do rádio.
Até que uma rua com menos trânsito surge do nada e o aeroporto bem à frente. O bigode-de-Magnum quase dá um cavalo de pau e estaciona em frente à entrada. Ela joga as duas mil coroas combinadas, pega a mochila e a bolsa e sai correndo pelo terminal. Mas tem parar depois de uns metros, pois o terminal estava lotado com as hordas do hóquei.
Disparando ´´com licença´´ em inglês, feito uma metralhadora, ela foi pulando um aqui e outro lá até finalmente chegar ao seu balcão de check-in, já esperando ter que gastar para tentar embarcar em outro avião.
A fila dava voltas e, depois de perguntar, ela viu que todos daquela fila iam pegar seu voo, que já estava atrasado. Quase uma hora depois ela chega ao balcão, perguntando se o avião já tinha saído.
A funcionária revira os olhos e fala que não ia sair tão cedo, com esta fila toda.
Ela parte para o setor de embarque, arrastando bolsa e tentando nadar no meio da multidão de torcedores. Faz sinais, tenta explicar em inglês misturado com as duas palavras em tcheco que sabia sem o dicionário (prosim para por favor e dekuji vám para obrigada), atropela alguns sujeitos bem maiores do que ela, sabe-se lá como.
Até que finalmente ela chega ao embarque, passa por corredores apertados com tanta gente que saía não se sabe de onde, chega ao avião.
Encontra sua poltrona, ajeita sua bolsa debaixo da poltrona da frente e, por via das dúvidas, pega o passaporte e coloca debaixo da camiseta, preso na alça do sutiã.
Ela já começa a cochilar quando um comissário de bordo anuncia com aquele sotaque que o voo iria atrasar.
Três horas.
Rap Tcheco com Indy A Wich